De quantas vidas é formada uma vida? E quantas mortes criam uma vida?
O assunto morte nunca foi para mim um tabu, mas sempre que falo sobre isso, as pessoas entabuzadas ficam chocadas, chegando a manifestar seu horror por eu, literalmente, rir e fazer piada da morte, sem nenhum pudor.
"Ah, você faz isso porque nunca perdeu alguém".
Pelo contrário, já perdi. E cada morte sinto como se fosse minha própria morte. Mas não tenho o ego tão grande a ponto de sofrer em luto porque alguém cumpriu o destino de toda vida, que é morrer.
Não tenho medo de morrer, então porque teria medo de encarar a morte ao meu redor?
Também não alimento o tipo de falácia mítica que transforma mortos em santos, sério, deixem os mortos em paz! Não vou carregar seu nome e brindar seu legado, esforçar-me para que não seja esquecido. É horrível essa lógica que faz com que as pessoas busquem a todo custo não morrer, seja deixando um legado, descendentes ou patrimônio. Pelo contrário, vim do pó, ao pó retornarei, sem nenhum ego, sem legado, sem descendentes, nem ilusão de que se lembrem de mim. Vida e morte são impermanência e nenhum rastro de nós deve permanecer. Essa é a vida bem vivida.
Sim, é uma ilusão que as pessoas vão seguir seu legado em sua memória. Se você ensinou a eles, elas se lembrarão de seus ensinamentos enquanto forem úteis. Se conviveram contigo, se lembrarão dos momentos mais marcantes. Mas cada um deve viver a sua vida e esquecer de você, até que um dia seu nome e seus feitos se apaguem. E você vai ter virado outro ser. Comida de verme, plantas, terra, água, fogo, ar.
Sobre virar outro ser, é assunto grande demais e não vou desenvolver agora porque quero falar da ilusão de que a morte é algo horrível e não-natural.
Ah, mas e a morte de crianças e bebês? Triste, sim, mas todo ser que vive tende a morrer. A mortalidade nos períodos iniciais de vida é mais natural que envelhecer, para muitas populações de seres. Só alcançamos a plenitude de reduzir a mortalidade infantil em populações humanas por conta da ciência, vacinas, medicina, educação para cuidados básicos, políticas de redução de doenças negligenciadas e redução da pobreza.
A morte não é apenas natural, é natureza. A morte está ao nosso redor todos os dias, em nossa mesa, no tanque de combustível, nos remédios que tomamos e nas roupas que vestimos. A morte também está dentro de nós: células nascem e morrem todos os dias. Na mata, os seres morrem e ficam onde estão, até virarem terra. E nem por isso os mares se revoltam, a terra treme e o céu escurece. O mundo continua girando e justamente porque a morte existe.
Costumo dizer que se tudo der certo, a gente envelhece. Mas essa frase também pode ser dita como: "se tudo der certo, a gente morre". Porque somos o ciclo de vida-morte.
A natureza se alimenta de morte.
O ciclo de vida-morte é tão junto e misturado que um começa onde outro termina e também um está dentro do outro. Morrem vários espermatozoides para que apenas um chegue a virar um princípio de ser. É natural, dizem, eles não sentem nada. A morte é mesmo natural, mas será que eles não sentem? Por que sentir é da nossa natureza enquanto seres viventes. A natureza sente, se entristece, se alegra. Nem por isso, a morte deixa de ser natural.
É triste sim, para muitos seres, a morte é triste. A percepção de não poder mais conviver com alguém a quem estamos acostumados. Macacos, aves, cães e até as plantas têm a percepção da morte. Muitos animais se entristecem, alguns gritam e parecem chorar, sinalizando seu sofrimento em altos brados.
Certa vez, ouvi um grupo de micos bradar em desespero. Estava trabalhando em meu escritório em uma noite gelada de inverno quando me encostei no vidro da janela que dava para a mata, tentando ver o que tinha acontecido. No dia seguinte, entendi: havia um pequeno mico morto no chão perto de onde eu ouvira os gritos do grupo. Se morrera de frio ou de alguma doença, eu não podia dizer, mas não apresentava sinais de ataque, desnutrição ou doença aparente. Podia ter morrido de frio, já que esse tipo de mico não é endêmico de onde moro e não aguenta temperaturas muito baixas.
Qualquer que seja o motivo, naquele momento os micos choraram. De seu jeito, expressaram sua dor de perder um parente. Como eles sentem isso? Pela percepção de solidão que a morte traz? Talvez pela noção de finitude? Ou pelo medo do sofrimento final? Não sei. Só sei que animais são emoção e instintos.
Apenas nós, seres humanos, racionalizamos sobre a morte, embora a emoção geralmente ganhe a melhor.
De onde vem o medo da morte?
Seria o medo do desconhecido? Da solidão? Medo de ser esquecido? Ou de esquecer? Da indignidade da deterioração do corpo? Do sofrimento?
Morte, essa desconhecida
Temos medo do escuro, de fantasmas, de que as religiões estejam certas ou erradas e a origem desse medo é o desconhecido, aquilo que não podemos prever. Nossa imaginação nos leva a criar esses medos para preencherem o desconhecido de crenças míticas que nos ajude a explicar fenômenos. A morte é o fim do que entendemos por vida. Depois dela, ninguém sabe, pois não podemos entender, apenas supor. O desconhecido é horrível para a emoção humana, intrigante para a razão, motivo de manipulação pelas religiões.
Para mim é intrigante. Como cientista que sou, entender a morte como ciclo natural da vida, a torna parte da mesma matéria. Ou seja, os mesmos fenômenos físicos podem ser observados. Logo, minha suposição é que tudo o que imaginamos com vontade sobre a morte se torna realidade. Afinal, criamos religiões e deuses com imaginação. Sistemas inteiros, complexos e fluidos, tudo com imaginação! Então, a morte é física, de fato, o fim, mas o que acontece com a consciência depois da morte é a imaginação que vai guiar. Cheguei a essa conclusão depois de muitos anos e experiências, por isso não considero que você acredite em mim. Sua imaginação vai dizer o que é verdade para você.
Solidão e memória
Solidão é um assunto complicado. O aumento do isolamento e da solidão nas sociedades modernas é um fenômeno complexo e crescente, motivado por uma combinação de fatores tecnológicos, sociais e demográficos. Tão sério que é considerado uma questão de saúde pública global pela Organização Mundial da Saúde (OMS). E não é assunto de velhos, que já estão mais perto da morte, pois afeta pessoas de todas as idades e classes sociais.
Temer a solidão é um fator que faz as pessoas se isolarem, por mais contraditório que isso pareça. Pois a solidão não é algo que se vive por estar só, mas algo que se sente por não se ter alguém com quem compartilhar lembranças e criar laços. E a morte, para muitos é o momento derradeiro no qual os laços se rompem e as lembranças somem. Vários autores contemporâneos enfatizam a ideia de que só existimos porque somos lembrados na memória de alguém. Perder isso seria, enfim, a morte.
Sofrimento
Nascer é um sofrimento e morrer também assim o é. Não me lembro de nascer, mas quando penso nisso, aquela primeira puxada de ar que damos, abrindo os pulmões com aquele elemento até então estranho ao nosso corpo, deve arder pra caramba! E no fim do corpo, a maioria de nós terá a consciência de que está acabando e sentirá a dor do corpo se desligando, rápido ou devagar.
Indigna morte
Não existe dignidade na morte, essa é uma verdade que leva muita gente ao sofrimento. Seu corpo será um estorvo. Deve ser eliminado rapidamente, para não atrapalhar os vivos. E não adianta se apegar, você também deve abandonar seu próprio corpo, deixá-lo alimentar os vermes ou virar pó e se unir à terra para alimentar as plantas. Também não sabemos como será, se estaremos lúcidos, babando, sujando fraldas, perdendo fluídos, a condição de estar vivo se esvaindo de forma miserável.
Não temos nenhum controle sobre isso. Vamos morrer e tchau.
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