quarta-feira, 12 de junho de 2024

Verônica Mars matando fadas da conveniência

Talvez você já tenha reparado a quantidade de clichês que as séries, programas televisivos, livros e filmes abraçam para satisfazer seus consumidores. Talvez você até goste destes clichês. Não te culpo, clichês são como comer a comida da sua mãe: é confortável, acolhedor e mesmo se não tiver um gosto muito bom, tem gostinho de afeto. 

Os clichês são sempre a busca pela fórmula vendável de uma peça de entretenimento. Isso ajuda a explicar porque algumas séries muito boas e originais não fazem um estrondoso sucesso e outra caem facilmente no gosto popular. Não que não tenha clichês em séries boas, mas esses clichês ocorrem com argumentos tão sólidos que se envolvem na trama e fazem muito sentido na história. 

Ao contrário dos clichês tolinhos que ficam figurando apenas como "fadas da conveniência", aquelas coincidências que acontecem para resolver o roteiro rapidamente, um personagem mau que morre, um policial que literalmente tropeça na pista, uma testemunha que viu tudo e do nada aparece para contar a história, o vilão que conta todo seu plano enquanto o mocinho está espionando...

Uma dessas séries que considero excelente e negligenciada pelo grande público é Verônica Mars. Foi lançada para a TV em um canal pequeno nos EUA, em 2004. Sim, caro leitor, na época em que mal havia vídeos na internet, você consegue imaginar a vida sem streaming? As produções artísticas e de entretenimento podem até ser excelentes, mas se não tiverem ampla distribuição e divulgação, jamais alcançarão o público. 

O contrário também acontece: produções clichezísticas amplamente divulgadas e distribuídas, que quando roda o trailer, já te dá aquela coceira. É alergia a "mais do mesmo". Arruina o cérebro, sério. 

Verônica Mars é uma série de drama, com mistério, investigações de assassinatos, crítica social, muito sarcasmo, drama e um roteiro muito bem escrito com personagens excelentes para uma história que começa no Ensino Médio de uma escola nos Estados Unidos. 

A gente vê a investigação se desenrolando sem fadas da conveniência, sem clichês forçados apenas para agradar ao popularesco, sem saídas fáceis para casos difíceis e com uma pegada firme em questões que não costumam ser retratadas com seriedade nos idos de 2004, como estupro de meninas e garotos, exposição de vídeos e fotos íntimas na internet, exposição de dados pessoais, as consequências do bullying por popularidade, por exemplo. E estas questões expostas ao desamparo da lei que na época não protegia ninguém dos abusos da internet e da negligência das autoridades policiais, que tratava meninas estupradas como aproveitadoras. 

Sabe, são questões que à época eram muito negligenciadas e a série as levanta com a força de uma protagonista mulher, inteligente, instigadora, meio maquiavélica, mas extremamente cativante. Hoje vemos personagens femininas "empoderadas" numa tentativa fraca de imitar superheroínas. Muito fajutismo feminista. E Verônica Mars tem uma natureza forte, embora apareça também em suas vulnerabilidades de forma tão natural, que as personagens girl power de hoje ficam na sola do chinelo. 

E ela tem a parceria, na verdade, uma cumplicidade incrível, com o pai, figura engraçadissima, com um grande senso de dever, que ensina a ela tudo sobre investigação e lhe dá liberdade de entrar em suas roubadas, ao mesmo tempo em que tenta protegê-la para que tenha uma vida mais próxima do normal para uma adolescente. É uma dupla que, sozinha, rende a série. Se não me engano até ganhou um prêmio de melhor relação pai e filha da TV. Se não ganhou, deveria, pois é inspiradora e os dois atores passam muita verdade. 

Outros personagens fecham o comboio. Verônica tem Wallace como seu melhor amigo e é uma amizade irmandade mesmo. Não vemos tensões amorosas em nenhum momento em sua relação. E seus namorados são peças muito interessantes também. Em particular, Logan, que cativou o público com sua veia de pobre menino rico extremamente sarcástico e rebelde, que não dá a mínima para nada, mas carrega um trem e bate em algumas caras por seu amor. 

E as investigações, nem mesmo o CSI tem um roteiro tão bom. Primeiro que, ao mesmo tempo em que ajuda o pai em investigações hardcore, Verônica resolve casos menores dos colegas para ganhar um extra na escola. E vemos como o trabalho se desenrola, sem truques cibernéticos, sem fadas da conveniência brotando magicamente. Investigação daquelas de chafurdar os confins do além e os detalhes não ditos de provas esquecidas ou negligenciadas pelo xerife vaidoso e incompetente da cidadela chamada Neptune. 

Enfim, estou revendo a série agora, por falta absoluta de encontrar qualidade ou roteiros bons em outras do Prime Vídeo. Mas, ao mesmo tempo, é interessante rever estes temas e ver que hoje são tratados de forma diferente, com outra pegada. 

E, claro, é sempre bom matar umas fadas

Crédito da foto: Warner Bros, Divulgação.


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