domingo, 2 de junho de 2024

Quem se importa?

 Ontem terminei de ver uma série chamada Um Cavalheiro em Moscou, baseada em um livro homônimo, escrito por Amor Towles, uma cara de depois de fazer carreira no mercado financeiro, tornou-se escritor em tempo integral. Ou seja, vive o sonho da vida de todo escritor: escrever sem se importar se isso vai dar dinheiro ou não, pois já tem dinheiro para se manter. 

Não li o livro, apenas vi a série no catálogo da Paramount e como tinha terminado um drama coreano sobre vingança e terminado apenas um filme bom sobre a naturalidade da morte na natureza, dentre tantos outros começados e não finalizados por absoluta incompetência roteiristica, a série me pareceu muito bem roteirizada. 

O roteiro, caros, é o que importa nos filmes e bons personagens são o que sustentam o bom roteiro. Na série um dos bons personagens que vemos é Mishka, amigo próximo do protagonista, o Conde Alexander Rostov. O contexto é a Revolução Russa, que estourou em 1917 e eliminou rapidamente os títulos de todos os nobres e toda a ordem aristocrática e monárquica até então estabelecida, transformando os nobres em criminosos, automaticamente. 

Alexander, o Conde, acaba sendo condenado por um tribunal bolchevique à prisão domiciliar e como ele estava vivendo em um hotel desde que sua casa havia sido incendiada, como a de vários nobres, em 1917, sua prisão passa a ser o próprio hotel, mas em um pequeno quarto do sótão. 

De cara, percebemos que este Conde não é um nobre esnobe qualquer, quando ele encara positivamente as mudanças, sem se afetar, ou reclamar, apenas mantendo sua dignidade, enquanto soldados sem hora marcada entram para revistar seu quarto e uma espécie de carcereiro carrancudo o vigia de perto, fazendo-lhe questionamentos e comentários que podem até ser considerados rudes, mas são apenas fruto de sua formação. 

E a história se passa entre 1922 e 1954, acompanhando este contexto de revolução e mudanças na política, economia e sociedade russa. 

Voltando a Mishka, este é um revolucionário de carteirinha. Um cara que pregava tomar todos os bens dos ricos para distribuir aos pobres, dividir suas terras e eliminar quem não colaborasse. Aleksander a princípio está desgostoso com ele, por suas ideias radicais e por um assunto do passado que os dois tem em comum. Mas logo, percebemos que a amizade é maior que questões políticas ou erros do passado. 

Mishka é extremamente leal a suas ideias, aos seus amigos e a si próprio. A ponto de se ferrar por conta de suas convicções. Afinal, nenhuma revolução violenta aceita opiniões divergentes. Ele é preso, enviado a um gulag e só sai de lá depois da morte de Stalin. 

Quando reencontra o Conde, está exausto e desgostoso com os rumos que seus ideais tomaram. O partido o expurgou como um criminoso e agora briga pelo poder. 

As decisões acerca da economia russa são catastróficas e provocam a fome, a miséria e a morte de milhares nos campos que outrora eram administrados pelos nobres, mas agora pertencem às comunas. Os nobres não estavam fazendo um excelente trabalho ao administrar suas terras e o governo, formado por nobres, também não ajudava, recusando-se a um investimento em tecnologia agrária que pudesse melhorar as condições de vida da população. Ou seja, a revolução de 1917 teve início na incompetência acumulada em décadas de má gestão. Só que a gestão comunista não fez melhor. 

As comunas não sabem administrar os campos. O governo coloca operários para cultivar alimentos e gerenciar as colheitas, sem nenhuma experiência. Por ter a ilusão de autossuficiência, a Rússia recusa inovações tecnológicas que possam melhorar a produção de alimentos. É um contexto que leva a um Estado quebrado, que sobrevive de aparências iludidas. O povo, que tanto foi usado na revolução, morre de fome em campos sem produção. 

E Mishka, após anos sendo leal ao partido, preso e expurgado por isso, vê seu sonho de igualdade, de fim da miséria e distribuição justa de recursos, reduzido a uma utopia nunca alcançada. E então, ele se despede da proteção do amigo, deixando apenas uma frase, quando perguntado aonde vai: 

"Quem se importa?"

A série tem muitas frases que te fazem refletir e duas mostram bem a personalidade do Conde: "Se a pessoa não dominar suas circunstâncias, ela é dominada por elas" e "O mais certo sinal de sabedoria é o contentamento constante". Mas, o "quem se importa?" do Mishka trouxe uma dimensão política avassaladora para as reflexões que a série traz. 

Primeiro: não é por acaso este contexto polarizado de uma revolução que rapidamente mudou toda a Rússia. Isso não era novidade há um século, assim como hoje, ainda é atual. Vivemos a ascensão dos partidos radicais de direita, teorias conspiratórias e ideias para revolucionar o mundo com armas e militares, porque estas polaridades são típicas do humano mediano, frustrado em sua ideia de dominar seu meio, com emoções infantis mal resolvidas. Ou seja, estão sempre lá no humaninho medíocre, prontas para aflorar quando um degenerado qualquer com ideias megalomaníacas de controle mundial e espírito patriótico surgir (e aqui nem estou falando apenas de Hitler). 

Segundo: "Quem se importa?" deveria ser uma frase repetida como mantra histórico. Pois ao final de toda revolução violenta, há apenas a dívida e a miséria. A história, para quem a conhece, está aí para confirmar isso. Mas os humaninhos medíocres sempre acham que farão diferente, pois acreditam em sua superioridade. 

Terceiro: "Quem se importa?" poderia até ser niilista, mas eu considero o niilismo uma ideia fraca de uns coitados depressivos. Porque o "quem se importa" significa muito mais do que "olha, sou um pobre depressivo porque tinha ideias de poder que foram frustradas". "Quem se importa?" significa a libertação dessas ideias que levam a humanidade a lugar algum. O humaninho medíocre sempre se encontra preso, acorrentado a ideias que já se provaram fracassadas, mas ele insiste que com sua superioridade podem ser melhoradas.

 

Mas a realidade é que se você deixa de se achar o umbigo do mundo e passa a entender que realmente ninguém se importa, você está livre destas correntes. Deixe de ser medíocre, humaninho! Deixe de querer a atenção de seu pai e sua mãe como criança frustrada que você é. Cresça! 

Enfim, a frase final de Mishka vem para nos jogar na cara esta realidade. A política que não importa, pois está em constante mudança e os humaninhos que topam jogar seu jogo querem apenas beneficiar seus próprios interesses. Os partidos que apenas são um microcosmos dos conflitos humanos e suas emoções infantis. Os governos que carecem de racionalidade e estratégias, pois vivem ao jugo dos partidos e interesses individuais. A sociedade que ignora como funciona um sistema político e sustenta ideias fantásticas de mundos fabulosos que não existem. 

Ninguém se importa, pois tudo muda e não temos controle de nada. Apenas o desejo infantil de reorganizar o mundo, como se fosse uma brincadeira de lego. 

Fonte: Divulgação Paramount, Um Cavalheiro em Moscou, para resenha. 


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