quarta-feira, 1 de maio de 2024

A ilusão de que trabalho enriquece

Estava analisando uma entrevista em que, dado momento, o entrevistado, um senhor distinto, militar, conservador, com linguajar simples, porém com arroubos de sofisticação se refere a um assassino que matou criança em uma creche como "aquele marginal". 

Então, passado o trabalho de análise, "aquele marginal" não saiu da minha cabeça. O sujeito, branco, militar, cargo importante, influente politicamente e em suas bolhas sociais já tinha se referido anteriormente à questão indígena com um discreto desprezo. E "aquele marginal" confirmou que seu verniz de pessoa importante era só a fachada do que representa uma boa parcela do povo, brasileiro ou não: 

garanto meus privilégios e os da minha bolha social, o resto é "aquele marginal". 

Indígena não compra imóveis, só pede suas terras de volta, então são "aquele marginal". Favelados, descendentes de escravizados não compram imóveis, então são "aquele marginal". 

Mas o mais interessante é que "aquele marginal", o assassino de crianças na creche era branco, vindo de uma família estruturada, pessoa de bem. 

Talvez nazista, talvez psicótico, com acesso pela internet a bolhas bem específicas de muito ódio, querendo cobrar de crianças brancas no alto do privilégio de sua creche porque não tinham mais direito a uma creche de brancos com a hora do soninho, em vez do trabalho assalariado que, segundo prometeram, traria a riqueza e o poder. 

Enfim, "aquele marginal" é qualquer pessoa de bem que metida em uma bolha alucina que o mundo está contra ele. Pode ser você, pode ser eu, pode ser qualquer fulano neste mundo. 

Tem um estudo baseado no Experimento de Aprisionamento de Stanford, que mostra que não é preciso muito estímulo ou muita realidade para uma pessoa "de bem" virar um maníaco assassino. Basta se perder em sua bolha. 

E como seres humanos, sempre fomos bolhosos, não é prerrogativa da sociedade atual. Seja menos humanos! Transite entre bolhas, estoure a sua, perceba como ela se move. E não se faça superior por isso, porque você vai perder sua humanidade: deixará de pertencer, de ser bairrista, de usar a mesma linguagem e mesmos argumentos dos outros. Vai ser o diferentão. 

Mas perdendo sua humanidade, você ganha toda a natureza que está fora da bolha. É mais ampla, é mais sábia, é mais livre. Poucos aguentam, se você não tem coragem, nem tente. 



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