quarta-feira, 12 de junho de 2024

Verônica Mars matando fadas da conveniência

Talvez você já tenha reparado a quantidade de clichês que as séries, programas televisivos, livros e filmes abraçam para satisfazer seus consumidores. Talvez você até goste destes clichês. Não te culpo, clichês são como comer a comida da sua mãe: é confortável, acolhedor e mesmo se não tiver um gosto muito bom, tem gostinho de afeto. 

Os clichês são sempre a busca pela fórmula vendável de uma peça de entretenimento. Isso ajuda a explicar porque algumas séries muito boas e originais não fazem um estrondoso sucesso e outra caem facilmente no gosto popular. Não que não tenha clichês em séries boas, mas esses clichês ocorrem com argumentos tão sólidos que se envolvem na trama e fazem muito sentido na história. 

Ao contrário dos clichês tolinhos que ficam figurando apenas como "fadas da conveniência", aquelas coincidências que acontecem para resolver o roteiro rapidamente, um personagem mau que morre, um policial que literalmente tropeça na pista, uma testemunha que viu tudo e do nada aparece para contar a história, o vilão que conta todo seu plano enquanto o mocinho está espionando...

Uma dessas séries que considero excelente e negligenciada pelo grande público é Verônica Mars. Foi lançada para a TV em um canal pequeno nos EUA, em 2004. Sim, caro leitor, na época em que mal havia vídeos na internet, você consegue imaginar a vida sem streaming? As produções artísticas e de entretenimento podem até ser excelentes, mas se não tiverem ampla distribuição e divulgação, jamais alcançarão o público. 

O contrário também acontece: produções clichezísticas amplamente divulgadas e distribuídas, que quando roda o trailer, já te dá aquela coceira. É alergia a "mais do mesmo". Arruina o cérebro, sério. 

Verônica Mars é uma série de drama, com mistério, investigações de assassinatos, crítica social, muito sarcasmo, drama e um roteiro muito bem escrito com personagens excelentes para uma história que começa no Ensino Médio de uma escola nos Estados Unidos. 

A gente vê a investigação se desenrolando sem fadas da conveniência, sem clichês forçados apenas para agradar ao popularesco, sem saídas fáceis para casos difíceis e com uma pegada firme em questões que não costumam ser retratadas com seriedade nos idos de 2004, como estupro de meninas e garotos, exposição de vídeos e fotos íntimas na internet, exposição de dados pessoais, as consequências do bullying por popularidade, por exemplo. E estas questões expostas ao desamparo da lei que na época não protegia ninguém dos abusos da internet e da negligência das autoridades policiais, que tratava meninas estupradas como aproveitadoras. 

Sabe, são questões que à época eram muito negligenciadas e a série as levanta com a força de uma protagonista mulher, inteligente, instigadora, meio maquiavélica, mas extremamente cativante. Hoje vemos personagens femininas "empoderadas" numa tentativa fraca de imitar superheroínas. Muito fajutismo feminista. E Verônica Mars tem uma natureza forte, embora apareça também em suas vulnerabilidades de forma tão natural, que as personagens girl power de hoje ficam na sola do chinelo. 

E ela tem a parceria, na verdade, uma cumplicidade incrível, com o pai, figura engraçadissima, com um grande senso de dever, que ensina a ela tudo sobre investigação e lhe dá liberdade de entrar em suas roubadas, ao mesmo tempo em que tenta protegê-la para que tenha uma vida mais próxima do normal para uma adolescente. É uma dupla que, sozinha, rende a série. Se não me engano até ganhou um prêmio de melhor relação pai e filha da TV. Se não ganhou, deveria, pois é inspiradora e os dois atores passam muita verdade. 

Outros personagens fecham o comboio. Verônica tem Wallace como seu melhor amigo e é uma amizade irmandade mesmo. Não vemos tensões amorosas em nenhum momento em sua relação. E seus namorados são peças muito interessantes também. Em particular, Logan, que cativou o público com sua veia de pobre menino rico extremamente sarcástico e rebelde, que não dá a mínima para nada, mas carrega um trem e bate em algumas caras por seu amor. 

E as investigações, nem mesmo o CSI tem um roteiro tão bom. Primeiro que, ao mesmo tempo em que ajuda o pai em investigações hardcore, Verônica resolve casos menores dos colegas para ganhar um extra na escola. E vemos como o trabalho se desenrola, sem truques cibernéticos, sem fadas da conveniência brotando magicamente. Investigação daquelas de chafurdar os confins do além e os detalhes não ditos de provas esquecidas ou negligenciadas pelo xerife vaidoso e incompetente da cidadela chamada Neptune. 

Enfim, estou revendo a série agora, por falta absoluta de encontrar qualidade ou roteiros bons em outras do Prime Vídeo. Mas, ao mesmo tempo, é interessante rever estes temas e ver que hoje são tratados de forma diferente, com outra pegada. 

E, claro, é sempre bom matar umas fadas

Crédito da foto: Warner Bros, Divulgação.


segunda-feira, 10 de junho de 2024

A capacidade humana de ser uma eterna criança fingindo ser um adulto

 Tenho escrito muito aqui sobre comportamento e várias vezes menciono a infantilidade nas relações e comportamentos humanos. Esta é uma constante que, por vezes, negamos que exista em nosso próprio comportamento. Mas está sempre lá. 

Porque a criança em nós é o Id. Sabe, da Teoria da Personalidade, descrita por nosso estimado companheiro de insônia e psicanálise, Sigmund Freud. Para resumir esta teoria, o Ego, o Superego e o Id são instâncias que formam a psique humana e vivem brigando entre si

O Id é a criança que só quer comer, brincar, cagar e prazeres da vida. O Ego é o que vai dar uma controlada no Id para adequá-lo à vida real, que precisa de convívio social, logo, algumas regras. E o Superego é o sábio em nós, tentado mostrar ao Id e ao Ego que existe mais do que necessidades básicas na vida. 

Aí, vai umas piadas sobre isso: 

O que disse o ego para o id? Não pense apenas em você mesmo! 

O que disse o superego ao id? Senta lá, Id! 

Por que o ego e o superego nunca saem para a noite? Porque eles são muito egoístas! 


Então, voltando para nossa divagação, a eterna criança em nós, esse Id, é quem sempre estraga tudo: os relacionamentos, suas metas, de trabalho, de estudos, de dieta, de qualquer coisa que exija um pouco de esforço. A pessoa com o Id dominante vive querendo apenas que seus desejos sejam atendidos e quando isso não acontece, se frustra como a criança que é. Às vezes isso aparece em formas bem elaboradas, como um mau humor, uma sabotagem, uma vingança. Mas outras vezes, vem em forma de birra, gritaria e raiva descontrolada. 

É possível enxergar essas nuances apenas se nós temos uma caminhada de autoobservação. Porque primeiro devemos olhar a coisa em nós, para depois observar nos outros. E claro, aprender a dominá-la nos ajuda a sermos humanos melhores. 

Mas, mesmo depois de uma boa dose de dominação do Id, mesmo sendo uma pessoa controlada e bastante Superego, sim, no fundo somos apenas crianças fingindo ser adultos. E quando a gente se pega chutando o balde é porque a criança birrenta, o Id tá no controle. Mas o pior é que a gente raramente se pega chutando o balde, a gente já se pega com o balde chutado e a merda toda feita. 

Então, se temos um Superego exigente, ficamos nos cobrando: porque não parei o pé antes de chutar? Mas nosso Ego vem e diz: ok você chutou por motivos nobres. E assim, a briga segue. 

No final das contas, na maioria das vezes o Id ganha. A chutação de balde continua, às vezes piora até um extremo, aí vem o Ego dá uma mediada, mas o Id é quem domina o mundo. Porque a gente consegue ver o Id nas ações dessas pessoas poderosas e bizarras, como o Putin, o Trump, Kim Jong-Un, Nicolás Maduro (engraçado, são todos homens!). 

A gente consegue ver a carência afetiva imensa dessas pessoas e o quanto precisam dominar, mostrar para o mundo, exibir seu poder, como um menino de oito anos que mostra o pinto para as meninas porque descobriu que isso causa certa comoção. 

Lógico que o pinto do menino de oito anos é um simbolismo para o que essas figuras mostram em termos de armas fálicas, obeliscos fálicos, topetes fálicos, bigodes fálicos, várias demonstrações de pintos infantis em obras adultas. Símbolos de adultos mal resolvidos e carentes

O Id é o que mostra que a humanidade não vai evoluir. Seremos todos eternas crianças birrentas, mostrando as genitálias como forma de chamar a atenção. 

sábado, 8 de junho de 2024

Por que os homens traem mais que os cães

Havia um cão. Ele se chamava Winky. Não sei se este era mesmo o nome dele, só sei que eu o chamava de Winky e ele me atendia. Olhava para mim, sorrindo, abanando o rabo. Feliz como só toda vez que me via. Winky era um cão ruivo, porte médio, pelo liso e um pouco longo. Um típico vira-lata bonito. Tinha o focinho fino e as orelhas pontudas de pé, como uma raposa. 

Era um cão muito esperto. Sabia que na rua tinha carros e somente a atravessava com muito cuidado. Winky era o cão mais esperto que eu já vira naquela rua onde eu o cuidava. Minha família tinha um mercado naquela rua e eu trabalhava nele. Todos os dias, lhe dava ração, trocava a água. Ele vinha querendo afago, brincava, caminhava ao meu lado, faceiro e contente. 

Se fosse longe, logo voltava. Eu sabia que não podia levá-lo para casa, pois já tinha mais cães que quintal, então, certo dia, um senhor que cuidava de um sítio se interessou por Winky e o demos a ele. O sítio ficava distante, quase uma hora de combi. E Winky foi na combi, feliz e faceiro, junto com as compras do mês. 

Até que três dias depois, quem aparece na rua outra vez? Ele mesmo, Winky, o cão ruivo. Feliz e faceiro. Sabe lá como, mas voltou a pé do sítio para o lugar que considerava seu lar. Eu disse que era o cão mais esperto que eu já conheci. E não só esperto, era leal. Leal como poucos humanos neste mundo. O cão mais leal do mundo. 

Winky não ficava conosco por comida, por cama quentinha, teto, dinheiro ou brinquedos. Ele apenas via em nós seu lar, seu bando. E como todo cão, Winky precisava de um bando e era leal a ele. 

Até que um dia, eu estava no mercado, quando dois clientes apareceram dizendo que Winky tinha morrido atropelado ali perto. Não é possível, pensei. Ele era muito esperto com carros e ruas. 

Mas o ser humano, este, desleal, o atropelou mesmo assim. Passou com o carro por cima dele, por querer. Não parou para prestar socorro, por querer. Nem mesmo procurou de quem seria aquele cão, por querer. O ser humano foi desleal com o cão mais leal do mundo. 

Os dois clientes, amigos nossos, se ofereceram para enterrar o Winky e sua curta e marcante história conosco se encerrou em uma cova triste. Sim, há homens leais. Mas nenhum como um cão. Nenhum como Winky. 

O homem que trai tem medo de ser dominado por sentimentos bons. Escolhe os ruins, portanto. Escolhe flutuar na superficialidade das relações egocêntricas, pautadas apenas por seus próprios prazeres. Não merece, portanto, confiança. Mas tem gente que confia. Que acha que ele é bom porque se ilude. Ou porque sabe que ele é ruim, mas acha que só com você ele não será. Porque você é especial. 

O homem que trai não vê ninguém como especial, apenas seu próprio pênis. Não pensa, pois se pensar, o pinto cai. O homem desleal não é desleal apenas com sua amante. É assim com tudo e com todos, por isso é tão visível que ele assim o será. 

O homem desleal tem traços muito evidentes: não cumpre pequenas promessas, menos ainda as grandes; tem uma baixa autoestima enrustida, que pode disfarçar com uma capacidade de sedução bem desenvolvida; quer dominar e busca o poder, nem que seja por meios desonestos; quer vantagem em tudo o que faz, mesmo que não mereça; não se importa em prejudicar outras pessoas, desde que leve alguma vantagem; pode até fingir muito bem que se importa contigo, mas você o pega nos detalhes; não está presente quando você precisa, sempre tem um compromisso; mente para os outros e espera que você o acoberte, ou esconde a mentira de você. 

Há ainda vários outros traços, mas o homem desleal sempre está no campo da necessidade de dominação sem escrúpulos, portanto tudo o que deriva disso está nos traços. Dá pra reconhecer um sem muita dificuldade, ele cheira deslealdade. Chega todo sedutor, sorriso estampador, charmoso. Você o pega na conversa, se quiser. Pergunta a ele se já traiu alguém, assim, de cara. Ele vai sorrir, tentar mudar o assunto, mas se responder, vai coçar o nariz, dizendo alguma mentira plausível. Vai olhar fixo em seus olhos e dizer que jamais faria isso contigo. Assim agem os mentirosos. 

Já o cão, ah... serzinho simples de entender. Se o cão quer te dominar, você o adestra. Ele convive contigo e te acompanha, te segue, te protege e te ama. Não exige muito. Até se você se esquecer de dar comida, ele não te cobra, não faz chantagens e manipulações. Facilmente se torna o cão mais leal do mundo. Assim como Winky era. 

Espero que você possa ter um Winky em sua vida. 

Por que sempre brigo com todo mundo - o rato interior de cada um

 Ontem, saí com alguns amigos para um rodízio de sopas. Um deles, engenheiro civil, está cuidando de uma obra cujos pedreiros dão muito trabalho, a despeito de seus esforços. E nesta semana, ocorreu uma briga entre dois dos pedreiros. O motivo: ignorância. 

A principal vulnerabilidade humana é a ignorância. Ignorar suas emoções, que são o principal condutor de seus pensamentos. As ações que o pedreiro que primeiro atacou tomou foram fruto de ignorar o que realmente ele sente em relação ao outro. Qual é sua necessidade? Dominar? Amar? Quer ser reconhecido? Ou apenas enxerga no outro algo que gostaria de ser e falha miseravelmente, por isso desconta sua frustração nele? 

A formação em engenharia falha em muitas coisas, a principal é que ninguém ensina a esses pobres profissionais que terão de ser psicólogos para mediar conflitos na equipe. Que trabalhar com acadêmicos é até fácil, pois eles são razoavelmente menos ignorantes emocionalmente. Mas trabalhar com trabalhadores de escolaridade baixa é extremamente problemático. 

É o nível mais baixo da roda dos ratos. Aquele nível em que eles apenas correm, correm e nunca chegam nem na ilusão de que vão chegar, pois são dependentes de seus vícios e paixões. Muitos são literalmente viciados, álcool, drogas, pornô, música ruim com péssimas mensagens (leia-se sertanejo popular e funk pessimista). 

Este blog não é nenhum meio de auto ajuda, pelo contrário. Estou aqui para provocar, distribuir tapas na cara, com verdades difíceis de digerir. E iningolíveis. 

Então se você é dessas pessoas que briga com todo mundo, esteja bem certo que o problema é todo seu. Você é a pessoa ignorante que implica por um copo de refrigerante, porque não reconhece que sente a necessidade de dominar. É uma criança frustrada que nunca dominou merda nenhuma na própria vida, por isso, esbraveja com todo mundo, culpando deus e o mundo por sua péssima educação e autopercepção. 

Se você briga com todo mundo, tenha certeza de que é uma pessoa patética. As pessoas inteligentes olham para você com pena. Você jamais será melhor que um pobre inseto tentando chegar na luz e morrendo ao se deparar com o calor dela. Você nem mesmo está pronto para a luz. Provavelmente a coisa mais perto de melhoria pessoal que vai conseguir será trocar seus vícios em álcool, drogas, pornô e música ruim por uma dessas igrejas evangélicas de brejo, que te oferecem a salvação fácil: basta acreditar e seu deus imaginário, benevolente, porém vingativo. 

Claro que existe outro caminho, mas este, uma pessoa ignorante, que briga com todo mundo por mesquinharia não está disposta a alcançar. Porque este caminho significaria abrir mão da fuga confortável dos vícios. Implica sentar-se e ouvir o que tem dentro de si. Entender seu demônios e começar a domá-los um a um. 

Ah... este é um processo lento, difícil e doloroso, conhecido como zen

O quê? Você achou que zen fosse calmo, lindo e tranquilo? Vou puxar seu tapetinho imaginário de conto de fadas. Não é. 

E é por isso que nunca tem muita gente praticando, meditando. Porque quando percebe que é dureza, pula fora, vai procurar a paz nutella, o mindfulness, Yoga na prática física, coisas assim que só iludem a mente com uma pseudopaz. Ou as igrejas cristãs com seus salvadores imaginários. Se você gosta de ser a eterna donzela em perigo que precisa de um salvador, seu caminho é este. Iluda-se com seu príncipe. 

Agora, se você quer mesmo dominar sua vida e suas emoções e não ser dominado por elas, o caminho é matar seu salvador e salvar a si mesmo. Matar metaforicamente, é claro, num processo de libertar -se desta ideia ilusória de que "alguém tem que me ajudar", "eu sou especial", "sou do povo escolhido". 

Essa ideia falsa e aprisionante de que sua vida depende de uma figura externa a você, mais poderosa, mais magnânima e mais inteligente, que vai te pegar pela mãozinha ou te carregar no colo quando você precisar. Isso, que você chama de deus, de guru, a figura da mãe, do pai, do chefe, do governo, do protetor, do salvador, não existe. É só sua imaginação. 

Claro que não é porque é sua imaginação que é falso. Pelo contrário. A imaginação é um ativo muito poderoso que os humanos possuem e que pode construir e destruir a si mesmo e ao mundo. E é por isso que devemos entendê-la e dominá-la. 

Porque se deixar a imaginação nos dominar, seremos eternamente os ratos correndo na rodinha, esperando chegar a algum lugar indicado por nosso salvador, o príncipe encantado, a mãe, o pai, seu deus, seu guru. Nunca botaremos a cabeça pra fora desta gaiola. 

A imaginação é um domínio humano e quando não a controlamos, são as convenções sociais que a controlam, a cultura popular incute imagens na nossa mente e nos tornamos apenas ratos obedientes. E temos até a ilusão de ter liberdade, pois o pão e o circo (leia como sextou, churrasco, álcool, drogas, pornô e música ruim) é permitido aos ratos no fim de semana. 

Então, se você quer continuar sendo um rato obediente e frustrado, que briga com todo mundo e acha que é porque a culpa é deles de te encherem o saco, continue correndo infinitamente, sextando obedientemente, alimentando seus vícios como um bom seguidor capitalista do consumo feliz. Continue sua vidinha de rato. 

Mas não sei... talvez você queira liberdade de verdade. Dói e é solitário, muitas vezes. Mas depois de algum tempo, a felicidade construída na verdadeira liberdade não morre, não depende de nada externo, é cultivada e mantida dentro de si. E ninguém lhe tira. 

A escolha é sua

domingo, 2 de junho de 2024

A liberdade de ser ninguém na fila do pão

 Ainda me lembro de uma figura comum nas tardes de domingo. Chamava-se Faustão e ocupava a grande da TV aberta em um canal bastante popular comum programa popularesco de auditório, Domingão do Faustão. Revelava artistas, tinha grande influência em suas carreiras. Logo, era disputadíssimo e brilhar no palco do programa era deslanchar na carreira. 

Isso em anos 1990, 2000, por aí. Depois, o programa foi caindo em desuso pela classe artística que passou a dispor da internet e das mídias sociais para se promover e se autopromover. 

Eu me lembro do Faustão, especificamente por uma frase que ele dizia: Um dia toda a plateia vai estar no palco e ninguém vai estar na plateia, pois todo mundo quer ser famoso. Ora, será que ele estava prevendo a ascensão dos influenciadores digitais? 

Obviamente ele não era tão digno de nota em sua capacidade cognitiva, então, acho que só o que ele queria dizer é: todo mundo quer ser famoso porque vê na TV esse "glamour" e acha isso bom. Acontece que as mídias sociais vieram para mostrar que a TV não importa mais tanto assim. E famosos aos milhares aparecem todos os dias. Tem muito famoso quem, mas também tem muita gente que não quer aparecer. 

Celebridades de internet ultra-nichadas. Quem nunca se deparou com o cartaz de um evento anunciando que Fulano, Ciclano e Beltrano vão estar lá e se perguntou quem eram? Hoje as celebridades são tão ultra-nichadas que, do nada, aparece um amigo hipster do seu lado, dando gritinhos de alegria porque Zé Fulano está no evento. E você achava que conhecia a bolha do seu amigo hipster, mas, de repente, se vê boiando sobre quem seria Zé Fulano. 

E por que saber quem é Zé Fulano é tão importante assim? - acabo me perguntando, pois justo eu, tenho ojeriza à ideia de celebridade, salvadores, endeusamento e idolatria. Só faz sentido saber quem é esta celebridade se você quer participar da bolha em questão. 

Ah... as bolhas. E o que são bolhas? Esses grupinhos que antigamente chamavam de tribos e só se identificava na adolescência. Mas agora que uma boa parte do mundo se esqueceu de crescer, a ideia adolescente de tribos se transformou em bolhas. Grupinhos que se identificam por um jeito de vestir, de falar, de se comportar, aparência similar, ídolos similares, ideias muito mais do mesmo similar. 

Comportamento de bolha, então, se torna tudo aquilo que essas pessoas fazem para se manter na bolha. E, acredite, são as coisas mais simples, como os canais de YouTube que seguem, e as coisas mais bizarras, como assassinar um cachorro e desenhar uma baleia na pele com estilete. 

Não são pessoas livres, pois estão na bolha e se a estourarem, serão afastadas com indiferença, bloqueio de perfil e até mesmo cancelamento online. O medo de não pertencer é constante e faz essas pessoas agirem como ratos em laboratório, hamsteres correndo em rodinhas até aceitarem que a bolha do Prozac é bem normal e bem-vinda. 

A ideia toda de identidade aprisiona estes seres, pois se forem excluídos da bolha, quem serão? O que farão de seu cabelo, o que vestirão? Que livros vão ler, que séries assistir? Com quem vão conversar sobre o mais novo episódio de Master Cheff, ou comentar sobre a mais nova tendência na cerveja artesanal? 

Quando você olha para os lados e vê apenas pessoas iguais a você, meu conselho é fuja. Fuja rápido e para longe. Sem olhar para trás. Porque sua vida vai ser só triste e monótona. Sua ilusão de pertencer vai te levar ao vazio criado pela identidade falsa. Você será apenas um falsário de si próprio. 

A liberdade não é concedida por ninguém, é tomada à força. 

É uma ideia da qual as mentes vivazes absorvem a essência repudiando rótulos, bolhas, identidades, similares, unanimidades. Toda unanimidade é burra, já dizia alguém muito importante que infelizmente esqueci quem é. 

Só tem liberdade quem tem coragem. Coragem de furar a bolha, de questionar a identidade, de abandonar seus rótulos e deixar de esperar likes e comentários nas mídias sociais para se sentir influenciador. Não vou usar o clichê de "ser quem você é", porque a maioria das pessoas infelizmente não sabe quem é, nem o que quer. Só sabe do que gosta e do que não gosta e isso não define ninguém. 

Gostar e não gostar é a receita para a eterna insatisfação e sofrimento. Se você apenas aceita o que tem para hoje, independente de gosto, se adapta e se move naquilo, buscando o que há de melhor, não no outro, mas em si mesmo com aquela situação, você domina as circunstâncias que causam o sofrimento. E aprende a ser livre. 

Liberdade é ser ninguém na fila do pão e amar isso. 

Quem se importa?

 Ontem terminei de ver uma série chamada Um Cavalheiro em Moscou, baseada em um livro homônimo, escrito por Amor Towles, uma cara de depois de fazer carreira no mercado financeiro, tornou-se escritor em tempo integral. Ou seja, vive o sonho da vida de todo escritor: escrever sem se importar se isso vai dar dinheiro ou não, pois já tem dinheiro para se manter. 

Não li o livro, apenas vi a série no catálogo da Paramount e como tinha terminado um drama coreano sobre vingança e terminado apenas um filme bom sobre a naturalidade da morte na natureza, dentre tantos outros começados e não finalizados por absoluta incompetência roteiristica, a série me pareceu muito bem roteirizada. 

O roteiro, caros, é o que importa nos filmes e bons personagens são o que sustentam o bom roteiro. Na série um dos bons personagens que vemos é Mishka, amigo próximo do protagonista, o Conde Alexander Rostov. O contexto é a Revolução Russa, que estourou em 1917 e eliminou rapidamente os títulos de todos os nobres e toda a ordem aristocrática e monárquica até então estabelecida, transformando os nobres em criminosos, automaticamente. 

Alexander, o Conde, acaba sendo condenado por um tribunal bolchevique à prisão domiciliar e como ele estava vivendo em um hotel desde que sua casa havia sido incendiada, como a de vários nobres, em 1917, sua prisão passa a ser o próprio hotel, mas em um pequeno quarto do sótão. 

De cara, percebemos que este Conde não é um nobre esnobe qualquer, quando ele encara positivamente as mudanças, sem se afetar, ou reclamar, apenas mantendo sua dignidade, enquanto soldados sem hora marcada entram para revistar seu quarto e uma espécie de carcereiro carrancudo o vigia de perto, fazendo-lhe questionamentos e comentários que podem até ser considerados rudes, mas são apenas fruto de sua formação. 

E a história se passa entre 1922 e 1954, acompanhando este contexto de revolução e mudanças na política, economia e sociedade russa. 

Voltando a Mishka, este é um revolucionário de carteirinha. Um cara que pregava tomar todos os bens dos ricos para distribuir aos pobres, dividir suas terras e eliminar quem não colaborasse. Aleksander a princípio está desgostoso com ele, por suas ideias radicais e por um assunto do passado que os dois tem em comum. Mas logo, percebemos que a amizade é maior que questões políticas ou erros do passado. 

Mishka é extremamente leal a suas ideias, aos seus amigos e a si próprio. A ponto de se ferrar por conta de suas convicções. Afinal, nenhuma revolução violenta aceita opiniões divergentes. Ele é preso, enviado a um gulag e só sai de lá depois da morte de Stalin. 

Quando reencontra o Conde, está exausto e desgostoso com os rumos que seus ideais tomaram. O partido o expurgou como um criminoso e agora briga pelo poder. 

As decisões acerca da economia russa são catastróficas e provocam a fome, a miséria e a morte de milhares nos campos que outrora eram administrados pelos nobres, mas agora pertencem às comunas. Os nobres não estavam fazendo um excelente trabalho ao administrar suas terras e o governo, formado por nobres, também não ajudava, recusando-se a um investimento em tecnologia agrária que pudesse melhorar as condições de vida da população. Ou seja, a revolução de 1917 teve início na incompetência acumulada em décadas de má gestão. Só que a gestão comunista não fez melhor. 

As comunas não sabem administrar os campos. O governo coloca operários para cultivar alimentos e gerenciar as colheitas, sem nenhuma experiência. Por ter a ilusão de autossuficiência, a Rússia recusa inovações tecnológicas que possam melhorar a produção de alimentos. É um contexto que leva a um Estado quebrado, que sobrevive de aparências iludidas. O povo, que tanto foi usado na revolução, morre de fome em campos sem produção. 

E Mishka, após anos sendo leal ao partido, preso e expurgado por isso, vê seu sonho de igualdade, de fim da miséria e distribuição justa de recursos, reduzido a uma utopia nunca alcançada. E então, ele se despede da proteção do amigo, deixando apenas uma frase, quando perguntado aonde vai: 

"Quem se importa?"

A série tem muitas frases que te fazem refletir e duas mostram bem a personalidade do Conde: "Se a pessoa não dominar suas circunstâncias, ela é dominada por elas" e "O mais certo sinal de sabedoria é o contentamento constante". Mas, o "quem se importa?" do Mishka trouxe uma dimensão política avassaladora para as reflexões que a série traz. 

Primeiro: não é por acaso este contexto polarizado de uma revolução que rapidamente mudou toda a Rússia. Isso não era novidade há um século, assim como hoje, ainda é atual. Vivemos a ascensão dos partidos radicais de direita, teorias conspiratórias e ideias para revolucionar o mundo com armas e militares, porque estas polaridades são típicas do humano mediano, frustrado em sua ideia de dominar seu meio, com emoções infantis mal resolvidas. Ou seja, estão sempre lá no humaninho medíocre, prontas para aflorar quando um degenerado qualquer com ideias megalomaníacas de controle mundial e espírito patriótico surgir (e aqui nem estou falando apenas de Hitler). 

Segundo: "Quem se importa?" deveria ser uma frase repetida como mantra histórico. Pois ao final de toda revolução violenta, há apenas a dívida e a miséria. A história, para quem a conhece, está aí para confirmar isso. Mas os humaninhos medíocres sempre acham que farão diferente, pois acreditam em sua superioridade. 

Terceiro: "Quem se importa?" poderia até ser niilista, mas eu considero o niilismo uma ideia fraca de uns coitados depressivos. Porque o "quem se importa" significa muito mais do que "olha, sou um pobre depressivo porque tinha ideias de poder que foram frustradas". "Quem se importa?" significa a libertação dessas ideias que levam a humanidade a lugar algum. O humaninho medíocre sempre se encontra preso, acorrentado a ideias que já se provaram fracassadas, mas ele insiste que com sua superioridade podem ser melhoradas.

 

Mas a realidade é que se você deixa de se achar o umbigo do mundo e passa a entender que realmente ninguém se importa, você está livre destas correntes. Deixe de ser medíocre, humaninho! Deixe de querer a atenção de seu pai e sua mãe como criança frustrada que você é. Cresça! 

Enfim, a frase final de Mishka vem para nos jogar na cara esta realidade. A política que não importa, pois está em constante mudança e os humaninhos que topam jogar seu jogo querem apenas beneficiar seus próprios interesses. Os partidos que apenas são um microcosmos dos conflitos humanos e suas emoções infantis. Os governos que carecem de racionalidade e estratégias, pois vivem ao jugo dos partidos e interesses individuais. A sociedade que ignora como funciona um sistema político e sustenta ideias fantásticas de mundos fabulosos que não existem. 

Ninguém se importa, pois tudo muda e não temos controle de nada. Apenas o desejo infantil de reorganizar o mundo, como se fosse uma brincadeira de lego. 

Fonte: Divulgação Paramount, Um Cavalheiro em Moscou, para resenha.